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7 ago 2011

Ana Teresa Vicente

Body Rondo

A morte suplantou o sexo como tabu contemporâneo. Se por um lado estamos rodeados de imagens de violência e morte (no cinema, por exemplo), o que parece vulgarizar estes temas, por outro, quando a morte se torna um assunto próximo – e portanto mais doloroso – parece adquirir um carácter de tabu.

A morte, de tão presente e familiar no passado torna-­‐se vergonhosa e objecto de interdição, o que atesta a revolução brutal nas ideias e sentimentos a ela relativos. Está aqui patente a tentativa de evitar à sociedade a emoção excessiva, um dever moral de contribuir para a felicidade colectiva, reduzindo ao mínimo as operações inevitáveis destinadas a fazer desaparecer o corpo.  
 
Os rituais são assim esvaídos da sua carga dramática, só se tendo o direito à emoção em particular. Tornar essa dor demasiado visível é tido como sinal de perturbação mental, má educação ou morbidez. Espera-­‐se de um doente terminal uma forma aceitável de enfrentar a morte e de viver enquanto morre, isto é, de forma a que esta possa ser tolerada pelos sobreviventes.       



Entre 1930-­‐50 a evolução das ideias e posturas relativamente à morte vão-­‐se precipitar. É um factor concreto e relevante que vai desencadear esta mudança: a deslocação do lugar da morte. «Já não se morre em casa, no meio dos seus, mas no hospital, sozinho». Passa a ser um fenómeno técnico cuja iniciativa passa da família para a equipa hospitalar, sendo a morte dividida em parcelas, em «pequenas etapas dentre as quais, definitivamente, não se sabe qual a verdadeira morte, aquela em que se perde a consciência ou aquela em que se perde a respiração».

Constatou-­‐se que um doente terminal deve viver a sua morte de forma conveniente, adoptando um estilo aceitável de a encarar, a ênfase recai sobre o aceitável, isto é, que possa ser tolerada pelos sobreviventes. Entra aqui em jogo a questão da individualidade, já que, segundo Edgar Morin, o horror da morte é a consciência de um vazio, de um vácuo, isto é, da perda dessa mesma individualidade o que atesta a consciência traumática onde anteriormente havia plenitude individual. 
 
A obsessão pela sobrevivência demonstra a preocupação da conservação dessa mesma individualidade para além da morte (como podemos constatar pelo uso do embalsamamento, muito comum nos EUA, ou pelos túmulos amplamente adornados). No entanto, o conhecimento da morte é externo, assimilado a partir do exterior, o que para Morin atesta a surpresa constante do homem com a morte, já que esta, afastada da vida quotidiana só irrompe quando o eu a olha ou se olha a si próprio (e que será, por vezes, o mal da ociosidade, o veneno do amor a si mesmo). A inconsciência da necessidade de morrer atesta uma certa animalidade (porque não é racional) que permite a vivência quotidiana, sendo portanto a obsessão da morte uma “diversão” da vida.   
 
A importância da imobilidade e silêncio na fotografia revela uma relação entre fotografia e morte. Estes dois aspectos não são só dois aspectos objectivos da morte, são também os seus maiores símbolos. 
 
Este silêncio era portanto um ponto fundamental que queríamos captar, uma certa ideia do silêncio da decadência, de fim de ciclo dado pela ilusão da suspensão do tempo, um tempo congelado e hipnotizante. Poderíamos mesmo afirmar que esta suspensão e ausência fossem a obra em si, uma vez que o sujeito destas imagens se encontra ausente, elas são destituídas de personagens (ou seremos todos hipotéticas personagens deste lugar).          




É um espaço privado por não ser acessível ao público em geral mas é ao mesmo tempo um espaço público por se encontrar num edifício hospitalar público. É um espaço anónimo, no sentido em que é desprovido de características pessoais, frio e asséptico. Esta frieza é realçada pela estrutura das imagens uniformes, com uma “aproximação” premeditada e neutra, no entanto, este ponto de vista frio encerra uma narrativa, na qual o observador projecta a sua própria subjectividade. Assim, o espaço é retratado como uma pausa fotográfica, uma observação algo distanciada. No entanto, o espectador ao ser confrontado com um formato não convencional é “relembrado” da subjectividade da veracidade fotográfica, pela afirmação de ser uma re-­‐presentação do real, uma manipulação que é exaltada. A veracidade do realismo óptico da fotografia é assim traída pelo uso deste formato que, em conjunto com o quadrado que o delimita funciona como uma oposição: as duas formas são regulares e estáveis, mas a estrutura compositiva e a manipulação por esta sofrida é posta em evidência.

O próprio título funciona como abertura do campo da imagem, já que poderíamos dizer que o sujeito se encontra já no título: é o corpo. Apesar de ausente das imagens ele está presente, no sentido em que o espaço fotografado existe porque existe um corpo, sem ele este não teria qualquer sentido. Há aqui um sentido anatómico na construção do próprio espaço.

A circularidade desafia a nossa percepção da realidade, da dimensão e da óptica de forma simples mas provocativa. A circularidade, como refere Arnheim, é a forma ideal para os objectos que pertencem a toda a parte e a parte alguma, logo esta forma serviria de metáfora para a era digital que vivemos. A cultura contemporânea é filtrada por uma lógica cartesiana, de progressão axial de linhas e ângulos rectos: bits, pixels e monitores quadrados/rectangulares.           




 


O círculo encerra um simbolismo arquetípico, representativo do todo eterno. A sua oposição com o formato quadrado (forma regular, de ângulos e linhas rectos) gera portanto antagonismo, que aplicado à imagem fotográfica resulta numa atribuição de significado ao recorte. Numa perspectiva formal o círculo é adaptável, flexível e de categoria neutra, isto é, essência de tudo o que é natural, primordial. Numa perspectiva simbólica é um ícone mutável, em que o símbolo pode ser traçado em numerosas disciplinas, desde a matemática à astronomia, da meteorologia à medicina. Emerson diz ainda que «o olho é o primeiro círculo» estando aqui em evidência a simulação da visão humana na fotografia, pela perspectiva monocular do mundo.

Superfície e tridimensionalidade anulam-­‐se assim pelo formato escolhido, como uma colecção de borboletas espalmadas nas suas vitrinas. Uma vez que a imagem fotográfica, numa série, não é autónoma relativamente às restantes, estas ganham significado pela interferência que cada uma opera com as restantes.

Peter Wollen: refere que a fotografia preserva fragmentos do passado como “moscas preservadas em âmbar” ideia corroborada por Roland Barthes quando refere que ao definir-­‐se a fotografia como imóvel “isso não significa apenas que as personagens que ela representa não se mexem, significa que não saem de lá: estão anestesiadas e fixadas, como se fossem borboletas.” Para este autor se a morte está menos no religioso, a fotografia corresponderia a uma “intrusão, na nossa sociedade moderna, de uma Morte assimbólica, fora da religião, fora do ritual, uma espécie de mergulho brusco na Morte literal.”

A fotografia está ligada à morte de numerosas formas, sendo que a mais imediata e explícita é a prática social de guardar fotografias em memória das pessoas que já não se encontram vivas. Mas diariamente passamos uma morte mais real, já que cada dia que passa estamos mais perto da nossa morte. Mesmo quando o sujeito fotografado ainda está vivo, o momento em que foi fotografado é já passado, desapareceu para sempre. De forma estrita, a pessoa que foi fotografada (não a pessoa total, que é um efeito do tempo) está morta: morta por ter sido vista, como diz Dubois num outro contexto.

A fotografia tem um outro aspecto em comum com a morte: o snapshot – uma abdução instantânea do objecto de um mundo para outro, para um outro tipo de tempo. Este take da fotografia é imediato e definitivo, tal como a morte. A fotografia é um corte dentro do referente, corta uma porção deste, um fragmento, para uma longa viagem sem regresso.


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Texto: Ana Teresa Vicente.

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